Roda de Conversa

04/11/2024 - 17:20 - 18:50
RC4.7 - Rede de Atenção à pessoas portadoras de Doenças Transmissíveis

53062 - A CONTRIBUIÇÃO DE WINNICOTT PARA A QUALIFICAÇÃO DO PTS: A REATIVIDADE PROFISSIONAL NUM CASO DE TUBERCULOSE DE DIFÍCIL TRATAMENTO
GUSTAVO TENÓRIO CUNHA - UNICAMP, MARÍLIA MARCHESE CESARINO - IBPW


Contextualização
A tuberculose é uma doença contagiosa, estigmatizada e com forte determinação social. A Atenção Primária é um dos pontos da rede quase sempre envolvido no cuidado e na coordenação deste. O caso relatado é abordado por uma disciplina do internato da graduação de medicina, sob demanda da equipe de saúde da família (ESF), na periferia de uma grande cidade. Durante 10 dias o grupo de 5 estudantes e 1 professor buscou apoiar a equipe, a paciente e a família na construção de um projeto terapêutico singular (PTS), deparando-se com padrões reativos da equipe que geravam indisposição para o cuidado. Havia um contexto de culpabilização da paciente pelo insucesso do tratamento, já que esta se recusava a tomar a medicação queixando-se de um efeito colateral não descrito na literatura. A influência cartesiana na biomedicina permite que a doença seja tomada por objeto de trabalho, e que descrições de sintomas e de efeitos colaterais de medicações possam ser compreendidos de forma dogmática. Um dos objetivos do PTS é a organização do cuidado não redutível a essa lógica. Para tanto, faz-se necessário que a equipe possa ser capaz de elaboração dos afetos que a atravessam, seja pelo reconhecimento da limitação de suas teorias, seja pelo reconhecimento de padrões de relacionamento iatrogênicos.

Descrição da Experiência
Uma jovem (25 anos), com uma filha de 4 anos, morando com a mãe e 5 irmãos em uma casa de 3 cômodos. A partir do terceiro mês de tratamento, a jovem passa a relatar fortes dores após uso da medicação. Como os sintomas não estavam descritos na literatura médica, foram atribuídos a causas
psicológicas. Vários pontos da rede assistencial envolvidos no cuidado reagiram a essa hipótese de forma a produzir uma ausência de cuidado. Foram 6 meses sem tratamento, chegando a pesar 30kg. A Vigilância Epidemiológica negava autorização para testar cada uma das medicações ambulatorialmente.
O ambulatório de infectologia também acreditava que o problema era psicológico e a culpabilizaram pela não adesão, o que gerou grande sofrimento. Parte da equipe da APS também adotou o discurso moral e até a recusa ao cuidado. Com o PTS foi possível uma persistência (em aliança com a paciente e familiares) em cada um dos pontos da rede, até que uma profissional do ambulatório regional de infectologia, que trabalha em hospital municipal, percebeu a necessidade de uma internação, descobrindo não só qual das medicações causava os efeitos colaterais, quanto compondo uma prescrição singular em gotas, para que a jovem pudesse terminar o tratamento, sob resistência das vigilâncias, apegadas aos protocolos.

Objetivo e período de Realização
A experiência ocorreu durante o primeiro semestre de 2023. Buscamos demonstrar a interação de diversas forças que dificultam a construção do PTS. Utilizando-se dos conceitos psicanalíticos de transferência e contra-transferência como parte da comunicação inconsciente entre paciente e profissionais, demonstramos que a escuta e a elaboração dos sentimentos incômodos, por parte do profissional, fornece elementos essenciais para a compreensão do sofrimento e para a construção do vínculo.

Resultados
A partir da construção do vínculo terapêutico com a família e do contato direto com ambulatório de especialidade, foi possível solicitar novas avaliações e discussões e sensibilizar uma profissional para mudança de abordagem. Além da internação, a elaboração de uma prescrição singularizada em gotas também foi fundamental. O vínculo com a ESF se fortaleceu e a paciente foi acompanhada por 9 meses. Neste período, ela se dirigiu todas as manhãs para tomar a medicação, chá e pão com manteiga. O apoio do professor e de estudantes contribuiu para a produção novos olhares, menos contaminados e reativos. Neste caso, pode-se observar que o apoio às equipes para a construção do PTS, lhes permitiu lidar melhor com aspectos como a complexidade no cuidado de uma doença contagiosa de tratamento longo, a pobreza, os limites da biomedicina e as distensões entre serviços de saúde.

Aprendizado e Análise Crítica
O PTS foi construído para enfrentar a fragmentação do trabalho em saúde. Porém, ainda que suas diretrizes recomendem um diagnóstico dos problemas para além do olhar biomédico e uma compreensão dos afetos envolvidos nas relações clínicas, muitas vezes ele se automatiza. Esta situação se agrava quando há grande probabilidade de fracasso. No entanto, estas situações são
relevantes para o aprendizado. A psicanálise de Winnicott permite pensar as noções de transferência e contra-transferência como aspectos da comunicação inconsciente não só do sofrimento em termos intrapsíquicos, mas daquele relativo aos fracassos do cuidado produzidos pelo ambiente, desde a família à vida social. Neste caso, a paciente, ao vivenciar uma situação incomum, foi
facilmente desacreditada e deslegitimada, reação que nossa sociedade produz contra a pobreza e às formas de adoecimento a ela associadas. Também é o modo como se trata a loucura. Neste caso, a idéia de que se tratasse de um problema psicológico, produzia desresponsabilização para o cuidado. Era imprescindível ouvir que o sofrimento era também relativo a uma vida de
descrédito e exclusão, numa sociedade que impõe perdas constantes de direitos à grande parte da população. Legitimar sua queixa possibilitou não só o tratamento para a TB, mas se constituiu como uma resposta integral ao seu sofrimento como pessoa, com sua experiência e sua história.

Referências
DEPOLE, B. F. ; et al . Projeto Terapêutico Singular: uma visão panorâmica de sua expressão na produção científica brasileira. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , v. 14, 2022.
OLIVEIRA, G.N. O Projeto Terapêutico Singular In CAMPOS, Gastão Wagner de Sousa; GUERRERO, André Vinicius Pires. (Org.). Manual de Práticas de Atenção Básica: saúde ampliada e compartilhada. São Paulo: [HUCITEC], 2008. 417 p. v. 1.
WINNICOTT, D. W. (1947). O ódio na contratransferência. Da Pediatria à Psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago, 2000.
WINNICOTT, D. W. (1955). Formas clínicas da transferência. Da Pediatria à Psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago, 2000.
WINNICOTT, D. W. (1960). Contratransferência. O Ambiente e os Processos de Maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
WINNICOTT, D. W. (1970). A cura. Tudo Começa em Casa. São Paulo: Martins Fontes,1999.

Fonte(s) de financiamento: Inexistente


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