Roda de Conversa

04/11/2024 - 13:30 - 15:00
RC4.3 - Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) (3)

53099 - UMA PROPOSTA DE ENFRENTAMENTO AOS DESAFIOS DA ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL NO CONTEXTO NASF/EMULT INSPIRADO NA PSICANÁLISE DE WINNICOTT
MARÍLIA MARCHESE CESARINO - IBPW, GUSTAVO TENÓRIO CUNHA - UNICAMP


Contextualização
Dentre as muitas características que diferenciam a Atenção Primária (APS) do restante da rede assistencial, destaca-se seu compromisso com a integralidade da pessoa. Tem, portanto, como uma das suas tarefas essenciais desenvolver a capacidade, não somente para lidar com problemas de saúde mental, como compreendê-los para além da dicotomia cartesiana que separa mente-corpo, presença marcante na biomedicina. Dificuldades, tanto epidemiológicas, com aumento do sofrimento mental decorrente das várias crises econômicas e sociais, sob a hegemonia do neoliberalismo; quanto epistemológicas, com a proliferação da conversão da descrição de sintomas à categoria de “doenças”, sob égide do DSM, têm sido constantes desafios. Neste contexto, o tema da saúde mental adquire nos últimos anos uma relevância incomum na APS, ansiando por modelos de cuidado que dêem conta, efetivamente, do sofrimento mental. D. W Winnicott foi certamente, dentre os grandes formuladores da psicanálise, o que mais esteve próximo de um sistema público de saúde (NHS), tendo participado da formulação e da gestão de políticas de grande impacto populacional. Destaca-se pelo desenvolvimento teórico tendo como pilar básico práticas de saúde e assistência social públicas, que foram determinantes para a consolidação de procedimentos clínicos adequados a realidades institucionais.

Descrição da Experiência
Proposta elaborada em espaço de supervisão individual para uma psicóloga apoiadora NASF/EMULT de três UBSs na periferia de uma grande cidade, a partir da qual foi possível experimentar um modelo de atenção baseado nas idéias de Winnicott. Modalidades de atendimento por ele praticadas, que não a psicanálise strictu sensu, serviram de inspiração para a organização do modelo de atenção, entre elas as Consultas Terapêuticas, a Psicanálise sob demanda e o Atendimento de Caso. Caracterizam-se pelo atendimento de acordo com as necessidades mais prementes e no momento em que elas se apresentam, o que, na maior parte das vezes, resulta em atendimentos breves. O trabalho foi estruturado pela oferta de longos períodos de acolhimento de livre acesso, de três a quatro períodos de 4 horas por semana. A partir desse contato, poderiam desdobrar-se atendimentos nos moldes das Consultas Terapêuticas, a saber, poucos atendimentos cuja técnica permite tratar o problema mais premente e, nos casos de crianças, contando com a ajuda dos familiares na continuidade do cuidado; ou os chamados Atendimentos de Caso, que envolvem uma estrutura de cuidados mais complexa de provisão ambiental concreta. Em todas as situações, havia a premissa de um atendimento sob demanda, garantindo livre acesso e cuidado longitudinal.

Objetivo e período de Realização
Foi realizado no período de 2016 a 2021 (com adaptações no período da pandemia). O objetivo é demonstrar a pertinência e atualidade do pensamento de Winnicott para o manejo de problemas de saúde mental na APS, a partir do NASF/EMULT, em um arranjo que privilegia a longitudinalidade e o livre acesso/acolhimento.

Resultados
Considerando que as estratégias antes utilizadas nas UBSs tinham pouca adesão, a reorganização do modelo permitiu o atendimento mais ágil, em maior número, com escuta qualificada e, na maior parte das vezes, eficiente em curto período de tempo. Essa nova situação incidiu sobre a relação com a rede, que encontrava-se reduzida à lógica de encaminhamento, gerando uma extensa fila para a primeira avaliação. O atendimento ágil e de livre acesso não só resolveu o problema da fila, como qualificou as discussões em espaços da rede, em especial, o de apoio matricial, transformando gradualmente a lógica de encaminhamento em uma lógica de compartilhamento. O livre acesso permitiu à equipe agenda mais flexível, diluiu a pressão das demandas e, ao mesmo tempo, produziu maior confiança dos usuários na equipe. No caso do atendimento de crianças, observou-se aumento da capacidade de responsabilização dos familiares. A oferta contínua de escuta e de orientação permitiram que as famílias se sentissem mais capazes e confiantes de cuidar de seus filhos, com necessidades específicas em função de problemas de saúde mental.

Aprendizado e Análise Crítica
Em termos de saúde global, são muitas as evidências que demonstram que acolhimento e longitudinalidade são estratégias que qualificam o atendimento em saúde e são, por isso, um dos pilares básicos da APS. No entanto, a operacionalização desses conceitos pode, por vezes, implicar em distorções. Reconhecemos em Winnicott, um pensamento capaz de dar sentido e sustentar teoricamente essas práticas. A radicalidade com que Winnicott introduziu a importância do ambiente para o desenvolvimento emocional faria com que ele chegasse a afirmar que cura significa cuidado, indicando que muito do trabalho em saúde mental é realizado por uma posição atenta, disponível e acolhedora de quem cuida. Se isto é importante para os usuários, também o é para a equipe, que sente que está fazendo um trabalho que faz sentido, uma vez que, impregnados que estamos da lógica médica de eliminação dos sintomas, o trabalho em saúde mental pode ser sentido como bastante ingrato. A manutenção contínua da disposição em cuidar reponde ao compromisso da APS em termos de longitudinalidade e livre acesso e à técnica psicanalítica por ele proposta que se apóia na noção de objeto subjetivo, o primeiro tipo possível de relação como o ambiente e, por isso mesmo, o mais fundamental. Nela, sujeito e objeto não se distinguem, o que, do ponto de vista do tratramento, significa que cuidado e cura são indissociáveis.

Referências
Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS Nº 635, de 22 de maio de 2023, Modalidades de equipes Multiprofissionais na Atenção Primária à Saúde.
Giovanella, L. e Mendonça, M. H. M. Atenção Primária à Saúde In: Giovanella, L. et. al. Políticas e sistemas de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2012.
Winnicott, D. W. Consultas Terapêuticas em Psiquiatria Infantil. Rio de Janeiro: Imago, 1984.
Winnicott, D. W.The Piggle. Relato do tratamento psicanalítico de uma menina. Rio de Janeiro, Imago, 1987.
Winnicott, D. W.O Ambiente e os Processos de Maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
Winnicott, D. W.Tudo Começa em Casa. São Paulo: Martins Fontes,1999.
Winnicott, D. W.Da Pediatria à Psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago, 2000.

A família e o desenvolvimento individual. São Paulo: Martins Fontes, 2001.


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