50718 - EQUIDADE E BIOÉTICA NA MICROALOCAÇÃO DE RECURSOS ESCASSOS NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE NO CONTEXTO DA PANDEMIA DA COVID-19 NO BRASIL LETÍCIA GONÇALVES - UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA, ESTELA MÁRCIA SARAIVA CAMPOS - UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA, MARIA CLARA DIAS - UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
Apresentação/Introdução As discussões sobre a alocação de recursos escassos traduzem os profundos desafios para a efetivação da equidade, enquanto princípio doutrinário do Sistema Único de Saúde (SUS). O estudo da equidade é importante na medida em que aborda uma categoria que tem orientado a intervenção do Estado no campo social e no desenho de políticas públicas nas últimas décadas (Rizzotto, 2011). Embora os princípios do SUS componham uma tríade indissociável (Cecílio, 2001), o reconhecimento das iniquidades em saúde, marcadas pela intersecção de categorias centrais como raça, gênero e classe social, destacam a necessidade de reduzir desigualdades injustas. Durante a pandemia da COVID-19 no Brasil, diante o crescimento acelerado da demanda por atenção terciária, gestores e profissionais de saúde foram convocados a estabelecer critérios para a priorização do acesso. Trata-se de uma das questões bioéticas mais complexas no campo da saúde pública, pela dificuldade e necessária ponderação em termos de justiça. As diretrizes para estas tomadas de decisão podem atenuar ou aprofundar as iniquidades. Esta pesquisa qualitativa, teve como objetivo mapear e analisar aspectos relacionados a definição de critérios para microalocação de recursos escassos de saúde durante a pandemia da COVID-19 no Brasil, por meio da análise de documentos emitidos por entes federativos, associações ou instituições diversas.
Objetivos Os objetivos da pesquisa fora: geral: mapear e analisar aspectos relacionados a definição de critérios para gestão e microalocação de recursos escassos de saúde durante a pandemia da COVID-19 no Brasil. Específicos: identificar quais atores participaram diretamente da proposição de Resoluções e Normativas para gestão dos recursos escassos em saúde; mapear e analisar os principais critérios de alocação sugeridos; analisar a incorporação e usos da bioética neste contexto.
Metodologia Para a realização da pesquisa, de abordagem qualitativa, adotou-se a Análise Documental como metodologia de investigação (Flick, 2009). Para seleção do corpus foram realizadas buscas em dois canais: 1) Diário Oficial da União; e 2) Google, de modo complementar, considerando o caráter restrito do veículo anterior. A busca considerou documentos publicados entre fevereiro de 2020 e junho de 2021 e utilizou como buscadores os seguintes termos, isolados ou combinados: “critérios para alocação de recursos”, “triagem para admissão em leito de UTI”, “alocação de recursos e COVID-19”, “distribuição equitativa de recursos durante a pandemia”. Foram adotados como critérios de inclusão: autoria oficial; ter como contexto a pandemia da COVID-19; conter teor orientativo e/ou de recomendação e acesso aberto. E como critério de exclusão adotou-se: artigos acadêmicos e textos jornalísticos. A análise sistemática dos documentos orientou-se por três categorias: 1) Instituições proponentes; 2) Principais parâmetros e critérios adotados para a priorização dos leitos de UTI; e 3) Incorporação das diferentes vertentes e abordagens da bioética.
Resultados e Discussão Os resultados evidenciaram: 1) a prevalência de instituições médicas; 2) a adoção prioritária de critérios técnico-científicos; e 3) a incorporação abstrata de princípios bioéticos. O primeiro documento publicado e adotado como referência para os demais foi produzido pelas instituições: Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB); Associação Brasileira de Medicina de Emergência (ABRAMEDE); Sociedade Brasileira de Geriatria (SBGG), Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP) e Sociedade Brasileira de Bioética (SBB). Os critérios sugeridos foram centralmente técnicos, combinando o escore de gravidade Sequential Organ Failure Assessment (SOFA) e, para avaliação da funcionalidade, o Eastern Cooperative Oncology Group (ECOG). A incorporação da bioética destacou a abordagem utilitarista clássica, com adoção do princípio de maximização dos benefícios a partir do número de pessoas beneficiadas e dos anos de vida salvos; e, para garantia da equidade foram adotados o “princípio de igualdade”, interpretado como o direito de todos serem avaliados e triados, e o “princípio de não discriminação”, interpretado como imparcialidade diante os marcadores sociais de gênero, raça, classe social, orientação sexual e idade. A democratização do debate foi considerada em apenas um dos documentos, com a inclusão dos princípios “de Transparência” e “da Participação” na elaboração de protocolos de triagem. Uma concepção de equidade mais abrangente e coerente com o princípio da universalidade poderia enfatizar a necessidade de ampliação do acesso por meio da gestão única dos leitos públicos e privados e a democratização no estabelecimento de critérios, combinando dimensões técnicas e de justiça (Ten Have, 2004), e incorporando as instâncias de participação social do SUS.
Conclusões/Considerações finais A pandemia destacou a relevância do SUS como abrangente política pública, entretanto, a garantia dos seus princípios doutrinários se configuraram como um significativo desafio. A pesquisa demonstrou que muitos entraves limitaram a efetivação da universalidade, da integralidade e da equidade. A análise de uma dimensão fundamental para a equidade, a justa distribuição de recursos, indicou ausência de centralização no nível federal de gestão, ênfase na abordagem individual, clínica e técnica, bem como redução da dimensão democrática (Gonçalves; Dias, 2020). Do ponto de vista da bioética, a adoção de princípios abstratos é insuficiente diante de questões concretas de justiça (Beauchamp; Childress, 1979). Além disto, a adoção do princípio da imparcialidade pode implicar em favorecimento de grupos já privilegiados, desconsiderando os Determinantes Sociais de Saúde, sobretudo aqueles descritos em termos das interseccionalidades (Crenshaw, 1991) de classe social, raça e gênero.
Referências Beauchamp, T. L.; Childress, J. F., 1979. Principles of Biomedical Ethics. Oxford University Press. Cecílio, L. As necessidades de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade e equidade na atenção à saúde. Rio de Janeiro, IMS, 2001. Crenshaw, K. W., “Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics and Violence against Women of Color”, Stanford Law Review, v. 43, 1991. Flick, U. Introdução à pesquisa qualitativa. 3ªed. Artmed, 2009. Rizzotto, M. L. F.; Bortoloto, C. O conceito de equidade no desenho de políticas sociais: pressupostos políticos e ideológicos da proposta de desenvolvimento da CEPAL. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, 2011. Gonçalves, L. Dias, M. C. Discussões bioéticas sobre a alocação de recursos durante a pandemia da COVID-19 no Brasil. Diversitates, 2020. Ten Have, H. Ethical perspective on health technology assessment. Int. Jour. of Tech. Asses. in Health Care, 2004.
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