52314 - RELATOS TRANS-ABORTEIROS: CAMINHOS E ENCRUZILHADAS DAS PESQUISAS QUE TRANSBORDAM AS FORMAS E NORMAS AO FALAR SOBRE ABORTO MARÍA ANTONELLA BARONE - UFES, MEL BLEIL GALLO - UFABC, ALE MUJICA RODRIGUEZ - UFSC
Apresentação/Introdução Buscamos ouvir as vozes que vêm dos mais diversos corpos-territórios e mostram outros caminhos e encruzilhadas ao se falar sobre aborto. Elas denunciam a insuficiência de alguns corpos-referenciais e mostram a necessidade de abordagens que ressituem o aborto como um evento comum à vida (não) reprodutiva das pessoas, sejam elas mulheres cis, pessoas intersexuais, pessoas transmasculinas, homens trans ou pessoas não-binárias. Recriam-se, então, formas de nomear algumas partes do corpo, processos e indicadores sanitários, assegurando-se a visibilidade de outras histórias, que transformam a ético-política-afetiva da elaboração das políticas em saúde.
Percebemos que essas disputas discursivas sobre aborto atravessam nossa sociedade e permeiam os processos de (res)significação de um "direito ao aborto", sem eufemismos. As narrativas-trans-aborteiras desafiam as produções sobre aborto e oportunizam um conhecimento que aponta para a dimensão ética da parcialidade, localização e precariedade, destacando a multiplicidade de vozes, perspectivas, realidades e significados do abortar, que nos dão algumas pistas para criar outros modos de sentir e pensar sobre o aborto. Dialogamos com as noções de justiça reprodutiva e decolonialidade para enfrentar a lógica cis-sexista branca e capacitista, própria de uma sociedade heterociscentrada, que ainda opera nos debates sobre o aborto.
Objetivos Apresentar algumas narrativas aborteiras de movimentos acompanhantes de aborto lesbo-trans-feministas em Abya Yala, que criam outros modos de sentir e pensar o aborto, a partir de diferentes perspectivas, com destaque nas que potencialmente desarticulam sentidos heterocisnormativos. Identificar/impulsionar alianças entre essas narrativas e o campo da saúde coletiva, para contribuir na construção de territórios de cuidado a partir de outras possibilidades de (re)existência, livres de violências.
Metodologia Apresentamos algumas confluências entre as mais recentes pesquisas das pessoas autoras, a saber a tese de Ale Mujica Rodriguez (UFSC, 2019), a dissertação de Mel Bleil Gallo (UFABC, 2021), e a tese de María Antonella Barone (UFES, 2022). O pensamento decolonial – vindo dos feminismos decoloniais antirracistas, e dos estudos transviades e transfeministas latino-americanos e caribenhos – é nosso referencial comum. Um pensamento-ação construído nas lutas e reflexões travadas a partir de experiências concretas de vida e resistência de povos e territórios historicamente colonizados, e suas elaborações contra-hegemônicas.
Adotamos ferramentas que nos permitiram compreender e potencializar as invenções teóricas e práticas das comunidades com que trabalhamos. Ale Mujica cartografou os cenários psicossociais do cuidado à saúde trans e as forças instituintes que os perpassam, enquanto Mel Bleil Gallo adotou como método uma análise genealógica a partir de etnografia multissituada junto a acompanhantes de abortos. Já Antonella Barone andou por caminhos tortos e desviantes misturando (outros) modos de fazer pesquisa e reinventando jeitos de se colocar no caminho das narrativas-trans-aborteiras.
Resultados e Discussão Há uma hesitação em defender explícita e simplesmente um “direito ao aborto”. Em vez disso, adotam-se terminologias como “direitos reprodutivos”, “saúde reprodutiva”, “direito e liberdade de escolha”, “autonomia das mulheres” ou, mais recentemente, “justiça reprodutiva”. Oculta-se o aborto com explicações, ressalvas e condicionantes, que, ao fim, contribuem para reforçar estigmas contrários às pessoas que abortam, ou mesmo para invisibilizar a prática do aborto entre corpos que escapam a determinados imaginários.
Partindo da urgência de descolonizar nossos desejos de punição quando de aborto se trata, temos outra urgência: desarticular os sentidos heterocisnormativos predominantes no debate do aborto. Como? Atentando para aquelas narrativas que problematizam o que conhecemos sobre o aborto, a partir de posições mais complexas. Quando discutimos o aborto trans, por exemplo, produzimos fissuras - subjetivas e coletivas -, nos imaginários, nas políticas, no fazer-cuidado, no fazer clínico, entre outras (im)possibilidades da saúde sexual e (não) reprodutiva.
O desafio se atualiza com interrogantes sobre como fazer leituras alternativas do nosso presente e construir compreensões desde “outras vozes”, considerando a singularidade que possibilita a criação de outras imagens e paisagens em relação à temática. É nosso exercício quando olhamos para os abortos autogestionados e apontamos para a consolidação do entendimento de que a segurança do aborto não mais se vincula à supervisão médico-hospitalar ou à previsão legal desse direito – de forma que nem a clandestinidade seria sinônimo de insegurança, nem a legalidade, atravessada por tantas violências institucionais (racismo, sexismo, transfobia, classismo, etarismo e capacitismo), significaria segurança.
Conclusões/Considerações finais As narrativas aqui destacadas apresentam a possibilidade de criar articulações trans-formadoras nos modos de sentir, pensar e ativar em relação ao aborto, como uma contribuição para dirimir estigmas que produzidos em torno de quem aborta. Realçamos outras agências, que trazem questionamentos ao transbordar as narrativas comuns à saúde coletiva. O desafio se torna um compromisso com o cuidado à saúde sexual e (não) reprodutiva para todas e todes, particularmente para quem anda às margens da cis-hetero-normatividade, como pessoas trans e não binárias, além das mulheres cis que abortam. Pensar a saúde integral dessas pessoas nos convida a enxergar os territórios construídos para esses cuidados e a multiplicidade de forças que atravessam esses cenários de demandas específicas. Isso implica trazer à tona constituições subjetivas que nos permitam acessar outros modos de sentipensar, para além das normas sexo-genéricas que nos regem.
Referências BARONE, M. A. Narrativas-trans-aborteiras: O Aborto desde una perspectiva trans e uma aproximação cuir/queer. Doutorado em Psicologia, UFES, 2022.
______. Aborto induzido em contextos de criminalização: o que a Psicologia tem a ver com isso? In: Violência e Saúde Mental: desafios contemporâneos. POA, RS: Ed Rede Unida, 2024.
BLEIL GALLO, M. Acompanhamento feminista ao aborto na América Latina e Caribe: justiça reprodutiva e resistência decolonial à biopolítica. Mestrado em Ciências Humanas e Sociais, UFABC, 2021.
______. Narrativas aborteiras: ressignificando o “direito ao aborto”. Seminário Internacional Fazendo Gênero 12, Anais Eletrônicos, Florianópolis, 2021.
MUJICA-RODRIGUEZ, A. Cartografias de cuidados à saúde trans na Atenção Primária do município de Florianópolis, 2017-2018. Doutorado em Saúde Pública, UFSC, 2019.
_______. Aborto legal para quem? Transfobia e binarismo estrutural e institucional. Portal Catarinas, 9 de out. de 2023.
Fonte(s) de financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES); FUNCAP. Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
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