Roda de Conversa

05/11/2024 - 13:30 - 15:00
RC2.14 - Caminhos Emancipatórios

53564 - ESCREVIVÊNCIA DE UM HOMEM NEGRO DO INTERIOR DA BAHIA
JOÃO CARLOS DOS SANTOS - UFC, RICARDO JOSÉ SOARES PONTES - UFC, JOÃO CARLOS GOMES DOS SANTOS JÚNIOR - FURB


Contextualização
A Escrevivência, cunhado por Conceição Evaristo, é utilizada para nomear uma escrita que se mescla com a sua vivência, com o relato das suas memórias e das de seu povo. É utilizada como ferramenta metodológica e método de investigação, de produção de conhecimento e de posicionalidade implicada. Toma como mote de criação justamente a vivência do ponto de vista pessoal mesmo, ou a vivência do ponto de vista coletivo. Peço emprestado valiosa ferramenta metodológica, cujo termo significa a escrita da vivência, para narrar minha história de vida, de homem negro e de outros homens e mulheres negras, pobres, submetidos a escravidão, subalternos, que fizeram parte da minha história, da minha família, meus ancestrais. Escrevo, não apenas para narrar a história de minha família e de meu povo marcado pelo racismo, mas escrevo uma história de resistência e resiliência. Não se trata de fatos fictícios, mas reais vividos por mim nas diversas fases de minha vida. É uma escrita comprometida com a vida, como homem negro, pobre, periférico, estudante, que fui, de escola pública, desde o nível primário e por toda formação universitária e hoje como doutorando, além de servidor público estadual e federal na esfera do Sistema Único de Saúde - SUS, não por meritocracia, mas buscando ocupar um lugar que historicamente nos foi negado e fomos impedidos de ascender socialmente.

Processo de escolha do tema e de produção da obra
A partir deste caminho metodológico, a escrevivência, escrevo, a minha história, como era a prestação de assistência à saúde a população negra na cidade de Ilhéus – BA, há 30 anos atrás quando existia apenas um posto do Instituo Nacional de Assistência Médica e Previdência Social – INAMPS; tinha direito ao atendimento quem contribuía com o Instituto Nacional de Previdência Social - INPS. Para ter acesso ao atendimento em caso de doença, era necessário pegar uma ficha de atendimento, e para isso meu pai saia na madrugada, caminhando, para a fila do INPS. Muitas vezes para garantir o atendimento tinha que pagar para as pessoas que passavam a noite na fila guardando e vendendo o lugar. Pela falta de atendimento médico na cidade meus pais recorriam as rezadeiras, benzedeiras, os remédios caseiros e chás, aos terreiros de macumba, os trabalhos das mães de santo, os banhos de ervas. Assim fui rezado de mal olhado, espinhela caída, arca caída, ar de morto e tantas outras enfermidades que erámos curados pelo poder da fé, da oração e das ervas. Esta era uma expressão de amor dos meus pais, em um tempo que não havia atendimento médico disponível, não existia SUS, e a consulta médica em clínica particular era de difícil acesso, então como cuidado tinha outras práticas populares e religiosas que hoje são reconhecidas pelo SUS como Práticas Integrativas e Complementares em Saúde.

Objetivo e período de Realização
Este trabalho foi desenvolvido no ano de 2023/2024. Tem o objetivo de narrar a minha escrevivência e a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra - PNSIPN na cidade de Ilhéus. Talvez não seja conforme os padrões da academia, mas uma forma de resistência e não silenciamento da voz de um povo e resgate de memórias. Foi desenvolvida pela oralidade, de familiares mais velhos e de documentos que incluem registros de nascimento e fotos que permitiram fazer um rastreio da nossa história.

Descrição da Produção
O estado da Bahia tem implantado o PNSIPN que foi instituída, pelo Ministério da Saúde (Portaria 992, de 13/05/2009) e objetiva garantir o direito e o acesso da população negra à saúde, por terem sido historicamente privados desse direito, em razão do racismo institucional e estrutural no Brasil. Algumas ações foram realizadas como o Seminário sobre Doença Falciforme, com a participação de representantes de vários municípios, inclusive de Ilhéus; Programa de Combate ao Racismo Institucional, com o objetivo de fortalecer e capacitar o setor saúde na identificação e no combate ao racismo institucional; criação de política para os quilombos localizados no estado; implementação do Programa de Combate ao Racismo Institucional nos municípios; publicação da Política Estadual de Atenção à Saúde da População Negra e Instituição do Estatuto da Igualdade Racial e de Combate à Intolerância Religiosa do Estado da Bahia. Observa-se que muitas ações estão sendo realizadas, porém é importante a população negra da Bahia e de Ilhéus ter conhecimento destas políticas, dos direitos garantidos por elas, das ações e dos serviços de saúde contribuindo para melhoria da sua qualidade de vida.

Análise crítica da obra
Espero que minha escrevivência seja um estímulo para outros da minha família, dar continuidade e escrever, denunciar e contribuir com transformações e mudanças da realidade posta, diante da exclusão que somos submetidos, e assim ocupar os espaços que nos são negados e assegurar conquistas dos nossos direitos. A escrevivência é uma escrita permeada de discussões que se referem a gênero e raça e é marcada pelo lugar de fala, de pertencimento e de denúncia ligada à consciência de negritude e luta antirracista que invade o lugar acadêmico, fazendo emergir histórias até então desprezadas e subalternizadas e valorização de histórias locais, femininas e do povo negro em uma transgressão epistêmica. As mulheres da minha família também foram marginalizadas, humilhadas, exploradas e discriminadas nas casas dos patrões como empregadas doméstica, lavadeiras e costureiras. A exemplo de minha mãe, que era costureira e juntamente com suas irmãs aproveitavam dos retalhos para confeccionar tapetes e lençóis. É exatamente isso que fiz, pois como elas, também confeccionei, com pequenos fragmentos a nossa história; elas através da oralidade, sem metodologia ou técnica e eu através da escrita. Minha escrevivencia não é de dor e sofrimento, mas de uma vida feliz, de sucesso e vitórias. Escrever a partir da experiência vivida, da interceccionalidade de homem e negro, em uma sociedade racista.

Referências
BISPO. F. S. Escrevivência como Metodologia de Pesquisa em Psicanálise. Ágora (Rio de Janeiro) v. XXVI, 2023
EVARISTO, C. A escrevivência e seus subtextos. In: DUARTE, C. L.; NUNES, I. R. (Orgs.). Escrevivência: a escrita de nós – reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Mina Comunicação e Arte, 2020, p. 26-46.
EVARISTO, C. Da grafia - desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita. In: Alexandre, Marcos A. (org.) Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições, p. 16-21. 2007
REMENCHE, M. L. R. e SIPPEL, J. A escrevivência de Conceição Evaristo como reconstrução do tecido da memória brasileira, Cadernos de Linguagem e Sociedade, 2019.
ROCHA, R. M. e AZEVEDO, P. B. O. Narrar sobre si e a escrevivência: o lugar da escrita autobiográfica em pesquisa sobre formação de professoras negras Inter Ação, Goiânia, v.46, n.3. 2021.

Fonte(s) de financiamento: Dos autores


Realização:



Patrocínio:



Apoio: