Roda de Conversa

05/11/2024 - 13:30 - 15:00
RC2.12 - Saúde Mental e Território no contexto das populações vulnerabilizadas

51250 - REDUÇÃO DE DANOS E AUTOCUIDADO: O “CUIDAR-SE” EM GRUPO PARA PROMOÇÃO DA AUTONOMIA INDIVIDUAL EM UM CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL ÁLCOOL E DROGAS
RAQUEL CERDEIRA DE LIMA - SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE DE FORTALEZA (SMS), FERNANDA DE MOURA SOARES - CENTRO UNIVERSITÁRIO CHRISTUS (UNICHRISTUS)


Contextualização
Este trabalho consiste em um relato de experiência de um grupo terapêutico ocorrido em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS-AD), baseado na estratégia de redução de danos (RD). Esta, embora seja hoje base para o planejamento e execução das ações no cuidado das pessoas que usam drogas, segue sendo mal compreendida ou integrada apenas parcialmente no cotidiano dos serviços de saúde, muitas vezes entendida como uma ação para “aqueles que não querem parar de usar drogas”. Esses tensionamentos ocorrem por questões morais e/ou pela hegemonia histórica de tratamentos para o uso de substâncias psicoativas (SPA) voltadas apenas para a abstinência, sendo esta obrigatória. Entretanto, percorrendo-se um caminho mais amplo, entende-se a RD como uma tecnologia de cuidado em saúde de contornos leves, sendo uma ética de cuidado que dialoga permanentemente com a política de humanização, tendo o cuidado voltado para o sujeito, de acordo com suas necessidades, potencialidades e limitações, onde ele é o protagonista do próprio tratamento. Este é feito em comunidade, de forma horizontal entre os pares, profissionais de saúde e familiares, entendendo a complexidade do problema das drogas em um mundo que naturaliza o uso de algumas SPA e condena outras, permeado por jogos de poder entre as organizações criminosas, as forças de segurança e os diversos modos de vida contemporâneos.

Descrição da Experiência
Dentro desse contexto, de início o grupo chamava-se “Grupo de Redução de Danos”. Entretanto, havia uma má compreensão da equipe do CAPS-AD sobre o perfil dos usuários que deveriam participar do grupo, pois achava-se que seriam aqueles que não buscavam a abstinência total das SPA. Assim, o grupo foi renomeado “Cuidar-se” e foi feito um momento com a equipe pela facilitadora, psicóloga do serviço, que explicou os fundamentos e objetivos do grupo e que se tratava de um grupo baseado na ética da redução de danos, em que o usuário era incentivado a se tornar corresponsável pelo próprio tratamento em saúde mental e uso de álcool e drogas, onde a autonomia do sujeito era incentivada, fortalecendo a noção de autocuidado. Assim, houve grande adesão por parte da equipe e o grupo tinha em quase todos os encontros uma média de 10 pessoas. Era um quantitativo alto para o espaço que se tinha disponível e, especialmente, por se tratar de um período pós pandemia, em que as atividades grupais estavam retomando. O grupo era aberto, ou seja, todos os usuários do serviço poderiam participar do encontro até a lotação da sala utilizada. A facilitadora trazia atividades lúdicas e rodas de conversa para reflexão sobre promoção de saúde no cotidiano, autocuidado e conversas abertas sobre drogas e seus efeitos, esclarecendo dúvidas sobre o tratamento e a relação individual e coletiva com as drogas.

Objetivo e período de Realização
As atividades ocorreram de janeiro de 2022 a agosto de 2023. O objetivo delas era fazer com que os sujeitos refletissem sobre sua implicação no tratamento e buscassem no dia a dia formas de autocuidado na sua comunidade, com suas potencialidades, baseado nas suas preferências e necessidades e que não tivessem necessariamente relação direta com o tratamento ofertado dentro do CAPS AD, ampliando o escopo do cuidado.

Resultados
Embora fosse um grupo aberto, cerca de 10 usuários frequentaram-no por mais de 3 meses. Alguns deles por todo o período descrito com breves intervalos, baseados em seus quadros de saúde. Cada encontro se fechava em si mesmo e ainda que se participasse de um encontro, se poderia sair com uma reflexão útil para o autocuidado. As rodas de conversa por inúmeras vezes traziam reflexões emocionais profundas, que puderam ser acolhidas e manejadas pela facilitadora. Elas levavam os usuários a reflexões sobre a própria vida, cuidados com o corpo, e a necessidade de mudanças no cotidiano para que transformassem o comportamento relacionado ao uso de SPA. Era notório como as descrições influenciam mudanças positivas nos outros. Houve momentos para tirar dúvidas sobre SPA e medicamentos, que acalmava algumas angústias como a de “trocar uma droga por outra”. Foram importantes reflexões sobre o relacionamento com a família e em alguns casos, em acordo entre eles, a participação de algum familiar. As atividades lúdicas (música, desenho, expressão corporal) levou alguns usuários a buscar outras atividades artísticas na comunidade, que teve, segundo eles, um impacto bastante positivo no tratamento.

Aprendizado e Análise Crítica
Esta experiência mostrou-se desafiadora especialmente pela tensão com a equipe. Muitos de seus integrantes, embora acreditassem nos fundamentos da RD, não se sentiam preparados para trabalhar na perspectiva por questões de preconceitos individuais e/ou por falta de capacitação adequada, o que fez com que a facilitadora trabalhasse sozinha por diversos momentos, o que é muito difícil dentro de grupos terapêuticos na saúde mental. Ela teve ajuda de estagiários e de alguns profissionais que convidava, especialmente para atividades lúdicas de desenho, música e expressão corporal, mas não foi algo sistemático. Apesar disso, os resultados foram importantíssimos por trazer evidências de que o cuidado humanizado e voltado para o sujeito fortalece o tratamento. Os retornos ao uso foram também diminuindo e a forma como os usuários lidavam com esses momentos não os desmotivava completamente como em outras abordagens mais radicais. Ao contrário, a dita “recaída” servia de mote para acolhimento pelos outros usuários, sendo inúmeras estratégias para lidar com a fissura compartilhadas. Como pode-se observar, de fato neste grupo a profissional era apenas uma facilitadora e os usuários davam norte ao grupo e construíram seus saberes em coletivo, fortalecendo sua autoestima, sendo o grupo um aliado na adesão e manutenção do tratamento, que é um conhecido desafio no tratamento do uso de SPA.

Referências
BRASIL. M.S. Guia estratégico para o cuidado de pessoas com necessidades relacionadas ao uso de álcool e drogas. SAS. Departamento de ações programáticas estratégicas. Brasília: Ministério da Saúde, 2015.

CERDEIRA DE LIMA, R. Estratégia de redução de danos em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas no município de Fortaleza: concepções e práticas / Raquel Cerdeira de Lima. – 2019. 184 f. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública, Fortaleza, 2019.

LABATE B. C. et al. (orgs.) Drogas e cultura: novas perspectivas – Salvador: EDUFBA, 2008.

RIBEIRO, M. M. Drogas e redução de danos: o direito das pessoas que usam drogas. – São Paulo: Saraiva, 2013.

TEIXEIRA, M. B. et al. Tensões paradigmáticas nas políticas públicas sobre drogas: análise da legislação brasileira no período de 2000 a 2016. Ciência & saúde coletiva, v. 22, n. 5, p.1455-1466, 2017.


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