Roda de Conversa

05/11/2024 - 08:30 - 10:00
RC2.10 - Cidadãos invisiveis: a saúde na rua

54022 - A NEGAÇÃO DA VIDA POR MEIO DAS POLÍTICAS DE MORTE: PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA NA CRISE SANITÁRIA DA COVID-19.
LIDIANE BRAVO DA SILVA - ENSP/FIOCRUZ, ROBERTA GONDIM DE OLIVEIRA - ENSP/FIOCRUZ, MARIANA VERCESI DE ALBUQUERQUE - ENSP/FIOCRUZ


Apresentação/Introdução
A colonialidade e o racismo consubstanciam a vivência vulnerabilizada da população negra brasileira, apartada do gozo dos direitos fundamentais para a manutenção da vida. Posto que a noção dos direitos humanos, construída sobre a perspectiva do sujeito universal - tendo como referência implícita o branco -, ratificada pelos marcos legais nacionais, não contempla grupos populacionais racializados enquanto negros. Por resultante, tais sujeitos estão expostos a uma dinâmica social em que as violações de direitos se amalgamam, de modo a produzir existências ainda mais à margem ou mesmo excluídas da garantia de direitos, sobretudo o direito à saúde e o direito à vida.
A crise sanitária, ocasionada pela pandemia do novo Coronavírus, acrescida à crise político-econômica e o recrudescimento dos cortes e retrocessos das políticas de proteção social - com gestão do governo Bolsonaro -, atrelada à carência de agenda pública estratégica por parte dos demais entes federados, fez com que tais pessoas, cuja vivência é vulnerabilizada por um Estado que não lhes confere direitos e cidadania, ao negar a condição de humano, se vissem ainda mais expostas à situação de rua e ao risco de morte por Covid-19.
O presente trabalho é fruto de uma pesquisa de dissertação que denuncia esse enredo de produção de corpos descartáveis, corpos matáveis que são alvo das políticas de morte do Estado.


Objetivos
A pesquisa desenvolvida teve por objetivo analisar a resposta do Estado à saúde da população em situação de rua no contexto da pandemia de COVID-19, tendo por base as questões racial e de direitos humanos. De modo a abranger as ações intersetoriais de enfrentamento à pandemia que foram direcionadas a esse grupo populacional no último mandato do governo Marcelo Crivella (2020), bem como o primeiro ano de gestão do Eduardo Paes (2021).


Metodologia
O estudo beneficiou-se de pesquisa documental efetuada no site da prefeitura do Rio de Janeiro, portal Transparência Rio, onde reúne os atos normativos criados para o enfrentamento à Covid-19. Do total de 891 atos normativos - segregados em: leis municipais; decretos municipais; resoluções e resoluções conjuntas; e portarias e outros atos - foram identificados 34 atos normativos destinados às pessoas em situação de rua ou que, em alguma medida, contemplem as necessidades desse público. Parcela expressiva são orientações acerca da condução dos serviços voltados a esse grupo populacional, em especial na Saúde e Assistência Social. Acresce-se aos passos metodológicos a observação participante, com vistas a analisar a implementação das medidas emergências dispostas nos atos normativos, junto aos profissionais da equipe de Consultório na Rua de Manguinhos, abrangência área programática 3.1, bem como entrevista com ator-chave da coordenação central da estratégia de Consultório na Rua. A sistematização dos dados coletados deu-se a partir das categorias: serviços, abrigamento, orientações na área da Assistência Social e Saúde, alimentação, higiene, e benefícios de transferência de renda.


Resultados e Discussão
Como resultado, foi possível observar que as medidas emergenciais desenvolvidas por ambas as gestões municipais foram insuficientes para garantir os direitos à alimentação, à moradia, à cidade, à assistência social, à saúde, e sobretudo o direito à vida - assegurados pela Constituição Federal de 1988 e dispostos na Política Nacional para a População em Situação de Rua. A política de morte, ou ainda, a necropolítica (MBEMBE, 2018), no cenário em questão, pautada na escassez de ações, assim como na não ação/omissão por parte do Estado, age de modo a expor as pessoas em situação de rua ao risco de morte pelo SARS-CoV-2.
Em 2020, estudos produzidos no campo da saúde coletiva (GÓES et al., 2020; OLIVEIRA et al., 2020) já denunciavam os altos índices de infecção e óbito pela Covid-19 na população negra - o que ratifica o racismo como um fator de determinação no processo saúde-doença. Esse dado foi, por diversas vezes, ignorado para a elaboração de programas e ações efetivas para assegurar o direito à vida da população negra em geral, tampouco seria considerado para estruturar as medidas emergenciais para a população em situação de rua - maioria negra -, com o objetivo de romper com a reprodução do racismo institucional (ALMEIDA, 2019), e, por conseguinte, a exposição de vidas negras à morte.
A partir do exposto, fica evidente que corpos, majoritariamente negros, que ocupam historicamente o território da rua no Brasil (NASCIMENTO, 2016; FERNANDES, 2021; MOURA, 2019) - cuja humanidade é negada por um projeto “civilizatório” colonial, onde o branco se forja como a referência de humano (FANON, 2008) -, são cotidianamente interditados pela necropolítica (MBEMBE, 2018).


Conclusões/Considerações finais
Em resumo, é possível afirmar que essa população ganha visibilidade nos territórios da rua - dado o esvaziamento das ruas provocado pela medida de reclusão domiciliar -, e também na agenda pública, por meio da atuação do poder executivo municipal. Contudo, as medidas emergenciais direcionadas às pessoas em situação de rua são insatisfatórias frente à amplitude e à condição de extrema precarização da vida dessas pessoas - o que resulta no negligenciamento da cobertura das ações, bem como na agudização da violação dos direitos humanos.
Decretado o fim do estágio de emergência sanitária da COVID-19 pela Organização Mundial da Saúde, em maio de 2023, o cenário desafiador para a saúde coletiva persistirá frente ao aprofundamento do fenômeno social da população em situação de rua - tendo em vista o crescente número de pessoas nesta condição de extrema vulnerabilização da vida, conforme identificado por estimativa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea (NATALINO, 2023).


Referências
ALMEIDA, S. L. O que é racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
FANON, F. Pele Negra, Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
FERNANDES, F. A Integração do negro na sociedade de classes. 6. ed. São Paulo: Editora Contracorrente, 2021.
GÓES, E. et al. Desigualdades raciais em saúde e a pandemia da Covid-19. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 18, n. 3, 2020.
MBEMBE, A. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018.
MOURA, C. Sociologia do Negro Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2019.
NASCIMENTO, A. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 3. Ed. São Paulo: Perspectivas, 2016.
NATALINO, M. Estimativa da população em situação de rua no Brasil (2012-2022). Brasília: Ipea, 2023.
OLIVEIRA, R. et al. Desigualdades raciais e a morte como horizonte: considerações sobre a COVID-19 e o racismo estrutural. Revista Cad. Saúde Pública v.36 n.9, Rio de Janeiro, 2020.

Fonte(s) de financiamento: O trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e da Rede de pesquisa com foco na Atenção Primária do Programa de Políticas Públicas e Modelos de Atenção e Gestão à Saúde, da Vice-Presidência de Pesquisa e Coleções Biológicas, da Fundação Oswaldo Cruz – Rede PMA/VPPCB/FIOCRUZ.



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