Roda de Conversa

05/11/2024 - 08:30 - 10:00
RC2.9 - Acesso à saúde da população em situação de rua

48709 - DESUMANIZANDO O SUJEITO E HUMANIZANDO A COISA: REFLEXÕES SOBRE O IMAGINÁRIO SOCIAL EM RELAÇÃO ÀS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA QUE USAM DROGAS
PRISCILLA VICTÓRIA RODRIGUES FRAGA - FIOCRUZ MINAS / INSTITUTO RENÉ RACHOU, PALOMA FERREIRA COELHO SILVA - FIOCRUZ MINAS / INSTITUTO RENÉ RACHOU, CELINA MARIA MODENA - FIOCRUZ MINAS / INSTITUTO RENÉ RACHOU


Apresentação/Introdução
O uso do crack atraiu as atenções no panorama político-midiático brasileiro, atribuindo à substância a responsabilidade por crimes violentos e uma suposta degradação moral, corroborando diversos mitos (Souza, 2016). Apesar dos avanços na saúde mental, o Estado brasileiro adota o proibicionismo como modelo de intervenção no uso de drogas, exceto nos serviços do SUS. A mídia segue permeada por discursos higienistas, que estigmatizam usuários de crack, com abordagens amedrontadoras e denominações pejorativas, contribuindo para a repulsa da sociedade.
A noção sobre o uso de drogas na atualidade é orientada por um modelo biomédico que prioriza os fatores biológicos em detrimento dos psicossociais, de forma contrária à Reforma Psiquiátrica brasileira, e, por vezes contribui na definição do destino dos usuários de drogas com base em definições morais e preconceituosas (Costa e Paiva, 2016).
Existe um paradigma na construção do imaginário social sobre o uso de drogas, e os sujeitos que fazem seu uso, com destaque o crack. Embora a droga seja inerte (coisa), é socialmente percebida como algo vivo, forte e potente, atribuindo-lhe características humanizadas. Por outro lado, os usuários da substância são frequentemente desumanizados, sendo chamados de “zumbis”, o que os representa como seres sem vida, negando o processo de exclusão social ao qual estão submetidos.


Objetivos
No presente relato de pesquisa busca-se compreender aspectos relacionados ao imaginário social sobre o uso de drogas, bem como sobre o processo de estigmatização que recai sobre as pessoas em situação de rua, com destaque às que fazem uso de álcool e outras drogas. O resultado apresentado é parte de uma dissertação de mestrado, que buscou compreender a atuação das equipes Consultório na Rua (eCR) no espaço da rua e das cenas públicas de uso de drogas no município de Belo Horizonte.

Metodologia
Trata-se de um estudo qualitativo, considerando que esse formato de pesquisa possibilita uma compreensão mais aprofundada de certos fenômenos sociais, apoiada no pressuposto da maior relevância do aspecto subjetivo da ação social face à configuração das estruturas da sociedade.
A coleta de dados ocorreu de setembro/2021 a abril/2022. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com 10 trabalhadores, e utilizou-se de método etnográfico por entender que permitiria “captar determinados aspectos da dinâmica urbana que passariam desapercebidos se enquadrados exclusivamente pelo enfoque das visões macro e dos grandes números” (Magnani, 2002, p.16).
A etnografia permite a compreensão das interações, práticas sociais e seus significados no desenrolar da vida social, colocando o pesquisador em contato direto com a cena no momento em que ela se produz e possibilita captar particularidades dos locais e sua dinâmica, assim como dos sujeitos envolvidos, indo além dos estereótipos. A etnografia foi essencial para a pesquisa, considerando que não seria possível captar muito do que ocorre nessas cenas por outros métodos, dada a marginalização (e criminalização) desses sujeitos e de suas condutas.

Resultados e Discussão
A PSR vivencia um processo repetido de barreiras de acesso às políticas públicas, com destaque aos serviços de saúde, por vezes atribuindo a esses sujeitos uma noção de degradação moral com reprodução de estigmas, principalmente nas situações onde é relatado o uso de drogas. A identificação de violências físicas cotidianas das forças de segurança pública direcionadas para a PSR se mostrou presente em diversos momentos da pesquisa, sendo apontadas por todos os trabalhadores das eCR como dificultador do processo de trabalho.
A PSR vivencia um processo de estigmatização reproduzido também nos dispositivos públicos quando tentam acessar os serviços, negando direitos sociais básicos, ou com oferta reduzida e precária a essa população. Para Souza (2016), o debate midiático sobre o uso de crack omite o tema das "classes sociais", entretanto, é eixo central pelo qual se articulam as formas discursivas, gerando mitos, como a guerra às drogas, que, na verdade, é uma guerra velada contra os mais pobres.
Ao acessar os serviços públicos, a PSR é frequentemente reduzida à condição de usuária de drogas, ignorando a diversidade de experiências e subjetividades que esse corpo carrega. É fundamental considerar as múltiplas e sobrepostas formas de violação de direitos sofridas pela PSR, sendo equivocado pensar o uso prejudicial de drogas descolado da sua realidade de vida.
A pesquisa demonstrou em Belo Horizonte realidade similar à retratada na literatura sobre as condições de vida e saúde da população em situação de rua PSR de diversas cidades brasileiras. Identificaram-se condições de vidas extremamente precarizadas, predominância de condições de trabalho precário, insalubre, com destaque à exploração da mão de obra dessas pessoas pelo tráfico ou das comunidades (Fraga,2022).


Conclusões/Considerações finais
Considerando que a experiência do uso de drogas é diversa e não resulta necessariamente de relação prejudicial, as consequências mais graves do uso afetam de maneira desproporcional as populações vulnerabilizadas. Desta forma, não se pode refletir sobre os prejuízos do uso de drogas sem considerar o contexto social que os usuários estão inseridos, as condições de acesso à cidadania, a relação singular que cada indivíduo estabelece com o seu uso, dentre outros aspectos.
O Estado brasileiro adota uma abordagem proibicionista em relação ao uso de drogas, e junto ao discurso midiático contribui com o preconceito contra a população mais pobre. Desta forma, a PSR que faz uso de drogas enfrentam diariamente violências decorrentes dessa política proibicionista, que afeta de maneira desigual as diferentes classe sociais, afastando-os dos serviços de saúde e aumentando os riscos que enfrentam devido à precarização das condições de vida.

Referências
COSTA, P. H. A; PAIVA, F.S. Revisão da literatura sobre as concepções dos profissionais de saúde sobre o uso de drogas no Brasil: modelo biomédico, naturalizações e moralismos. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 26, p. 1009–1031, set. 2016.

FRAGA, P. V. R. “Tá normal! tá normal! a saúde chegou”: etnografia da atuação do Consultório na Rua de Belo Horizonte nas cenas de uso. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva.). Fundação Oswaldo Cruz. Instituto René Rachou. Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. p.141. 2022.

MAGNANI, J. G. C. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 17, n. 49, p. 11–29, jun. 2002.

SOUZA, J. Crack e exclusão social. 1ed. Brasília. Ministério da Justiça e Cidadania. Secretaria Nacional de Política sobre Drogas, 2016. 360 p.

Fonte(s) de financiamento: As autoras agradecem à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), pelo apoio financeiro por meio da Chamada FAPEMIG 13/2023 - Participação coletiva em eventos de caráter técnico-científico no país.


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