04/11/2024 - 13:30 - 15:00 RC2.2 - Povos Indígenas, Quilombolas e Comunidades Tradicionais |
50930 - SAÚDE MENTAL E POPULAÇÃO QUILOMBOLA: UMA ANÁLISE CRÍTICA DO ACESSO NO ARCABOUÇO LEGAL ALESSANDRA REGINA DE SOUZA SANTOS - INSTITUTO DE SAÚDE DA SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE DE SÃO PAULO, THAINARA DE LIMA SILVA - INSTITUTO DE SAÚDE DA SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE DE SÃO PAULO, CLÁUDIA MALINVERNI - INSTITUTO DE SAÚDE DA SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE DE SÃO PAULO, MÁRIO HENRIQUE DA MATA MARTINS - UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS (UFSCAR)
Apresentação/Introdução Inspirado na reforma psiquiátrica da Itália, o movimento antimanicomial brasileiro emergiu nos anos 1970, tornando-se gênese do arcabouço legal que sustenta as políticas de saúde mental no âmbito do SUS. Centrado na tese antimanicomial e na promoção do cuidado de base territorial e comunitária, o movimento desembocou na Lei nº 10.216, de 2001, e nas portarias que se seguiram, para assegurar, nos termos expressos dos textos legais, acesso justo, equânime e de qualidade de todos os brasileiros aos serviços de saúde mental ofertados pelo SUS. Políticas para populações específicas foram criadas para assegurar esse direito. Contudo, ainda que explicitem essa garantia, efetivamente elas não têm sido capazes de eliminar ou reduzir as iniquidades no acesso à rede de atenção psicossocial dessas populações, historicamente submetidas à privação de direitos. É o caso das comunidades quilombolas, que vivem na intersecção de desigualdades sociais provocadas por questões de raça/cor e classe e pela precariedade dos próprios territórios que ocupam, em geral fragilizados por situações socioeconômicas e ambientais produtoras de vulnerabilidades, adoecimento mental e sofrimento psíquico. Frequentemente isolados em áreas desprovidas de infraestrutura de mobilidade, essas comunidades vivem cotidianamente desafios de acesso aos serviços públicos, particularmente aos equipamentos de saúde mental.
Objetivos Parte de uma pesquisa de mestrado, o presente trabalho analisa como as leis que estruturam as políticas de saúde mental e de populações vulnerabilizadas, em especial quilombolas, abordam a questão específica do acesso às redes psicossociais do SUS. Buscou-se identificar no arcabouço legal a presença ou a ausência de diretrizes norteadoras que permitam aos gestores construir e implementar ações efetivas e factíveis para superar o desafio do acesso de quilombolas aos serviços de saúde mental.
Metodologia Análise qualitativa da legislação que estrutura as políticas de saúde e saúde mental e de populações específicas, neste caso, para identificar o acesso à saúde de quilombolas. Com foco nos repertórios linguísticos (termos, conceitos, figuras e recursos da linguagem presentes em discursos, que circulam na sociedade e produzem sentidos) sobre garantia de acesso à rede de atenção psicossocial do SUS, a análise faz uma aproximação com o referencial teórico-metodológico das práticas discursivas e produção de sentidos. Os documentos foram coletados nos portais do Sistema de Legislação da Saúde do Ministério da Saúde e do Conselho Nacional de Saúde. Foram localizados sete documentos legais: 1 decreto (nº 11.447, de 21/03/2023), 3 leis (12.288/2010, 10.216/2001 e 8.080/1990) e 3 portarias (3.088/2011, 2.866/2011 e 992/2009). Complementarmente, foi analisado o relatório final da IV Conferência Nacional de Saúde Mental Intersetorial (2010), entendido como instrumento de política pública.
Resultados e Discussão Entre 1990 e 2011, nenhum dos quatro textos analisados menciona a população quilombola, que só emerge como alvo da política de saúde na Portaria n° 2.866. Publicada no final em 2011, reconheceu as condições de vida como determinantes do processo saúde-doença dos povos do campo e da floresta, incluindo quilombolas, postulando que o acesso deveria ser garantido segundo a diversidade social, os modos de vida, as crenças e os valores desses grupos, sem, contudo, abordar o acesso à saúde mental, que foi foco da IV Conferência de Saúde Mental, realizada seis meses antes. Esse relatório, marcado pela interseccionalidade, destacou a inclusão e o acesso universal à atenção em saúde mental de quilombolas. Apenas em 2023, com o Decreto 11.447, que instituiu o Programa Aquilomba Brasil, essas comunidades tiveram espaço na agenda pública. No texto, ainda incipiente, está o acesso à saúde mental. Com relação à análise dos repertórios interpretativos, foram identificados quatro recursos linguísticos que corroboraram para que a população quilombola e as ações a serem desenvolvidas para ela fossem invisibilizadas: o uso do sujeito oculto (que exige uma interpretação crítica do contexto por parte dos leitores), a categorização por pertencimento (que engloba diversos grupos, inclusive quilombolas, de modo indiferenciado sob o mesmo signo), a exemplificação excludente (que limita o escopo do que caracteriza um exemplo) e a imprecisão sistemática (que torna as promessas de políticas públicas vagas e sujeitas a não serem plenamente implementadas). Todavia, é importante salientar que o uso de tais recursos vai sendo paulatinamente reduzido nos documentos da política pública conforme o avanço do tempo.
Conclusões/Considerações finais O discurso das políticas públicas, refletindo contextos demarcados, parte de uma noção generalista de população, avançando morosamente, por diretrizes e normativas assentadas nas demandas coletivas, para os marcadores sociais da diferença de populações específicas. No caso dos quilombolas, em uma perspectiva histórica, a construção desses documentos buscou suprir as lacunas da legislação até desembocar no Aquilomba Brasil, uma carta de intenções para melhorar o acesso desse grupo a bens e serviços públicos, inclusive a saúde mental. Isso pode ser identificado em relação à redução, ao longo do tempo, do uso de recursos linguísticos que omitiram diretamente ou incluíram de forma implícita a população quilombola, dificultando o reconhecimento e a garantia de seus direitos. Concluímos que os próximos documentos de políticas públicas devem continuar sendo formulados em uma linguagem inclusiva para que os direitos dessa população sejam plenamente visibilizados, reconhecidos e efetivados.
Referências Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.866, de 2 de dezembro de 2011. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), a Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta (PNSIPCF). Diário Oficial da União, 5 dez. 2011.
Conselho Nacional de Saúde. Relatório Final da IV Conferência Nacional de Saúde Mental Intersetorial. Brasília: CNS, 27 de junho a 1 de julho de 2010.
Brasil. Decreto nº 11.447, de 18 de abril de 2023. Institui o Programa Aquilomba Brasil e o seu Comitê Gestor. Diário Oficial da União, 18 abr. 2023.
MARTINS, M.H.M.; RIBEIRO, M.A.T. Repertórios linguísticos dos riscos industriais no Pontal da Barra, Maceió. Athenea Digital. Revista de Pensamiento y investigación social, v. 16, n. 1, p. 139–158, 2016
|
|