Comunicação Coordenada

04/11/2024 - 17:20 - 18:50
CC2.3 - Políticas Públicas em Saúde Indígena: diálogos entre os saberes da Saúde Coletiva e os saberes dos territórios

52664 - ENTRELAÇANDO POLÍTICA E PRÁTICA: UMA ANÁLISE ETNOGRÁFICA DA IMPLEMENTAÇÃO DA SAÚDE INDÍGENA NO BRASIL
ROBERTA AGUIAR CERRI - ILMD/ FIOCRUZ AMAZÔNIA, LUIZA GARNELO - ILMD/ FIOCRUZ AMAZÔNIA


Apresentação/Introdução
Promulgada em 2002, a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI) estabelece diretrizes para a organização da atenção à saúde indígena no Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASISUS), instituído em 1999. Originalmente, a PNASPI foi moldada por uma constelação de forças políticas que uniram sanitaristas, parlamentares comprometidos com a Reforma Sanitária, associações e lideranças indígenas na luta pela validação de seus direitos (Pontes, 2021).
Entendemos como política pública um programa de governo que inclui valores e mecanismos de operação capazes de impactar a ordem social e econômica. Uma política pública não é localizada; trata-se de um fenômeno disperso que transcende limites geográficos e temporais (Ferguson e Gupta, 2002) exigindo dos analistas um esforço interpretativo abrangente, considerando a política ou doutrinas de origem, mecanismos burocráticos e a compreensão subjetiva dos indivíduos sobre o fenômeno.
Isso nos leva a formular as seguintes questões: Como analisar o processo de implementação da política de saúde indígena considerando a influência das práticas institucionais e a compreensão dos agentes? Quais os efeitos da burocracia nos diferentes níveis de implementação e como se relacionam? São eles capazes de construir um tipo singular de política de saúde, conforme preconizado pelo movimento que levou à formulação da PNASPI?


Objetivos
Este estudo tem como objetivo explorar a abordagem teórico-metodológica que orientou uma pesquisa sobre a implementação da política de saúde indígena, abrangendo dois sucessivos desdobramentos: (1) o desenvolvimento de um modelo metodológico e sistêmico de análise, incluindo a aplicação da etnografia em organizações como método de pesquisa; e (2) os resultados obtidos e a relevância dessa abordagem na pesquisa sobre políticas de saúde.



Metodologia
Inspiradas pela abordagem proposta por Stephen Ball (1994), utilizou-se um modelo de análise que permite uma interpretação inter-relacionada e não-linear da implementação de políticas a partir das variáveis: redes de poder, discursos e tecnologias. Tais variáveis foram consideradas como contextos sobrepostos ao ciclo de políticas, abrangendo: (1) o contexto de influência, evidenciado pela ação política de grupos de interesse (redes de poder); (2) o contexto de produção de textos, evidenciado por documentos institucionais e pelas falas dos implementadores (discursos); e (3) o contexto da prática, observado por meio de técnicas e rotinas praticadas pelos implementadores (tecnologias).
Para coleta de dados e análise, optou-se pela pesquisa etnográfica guiada pela abordagem conceitual e metodológica de etnografias em organizações explorada por Teixeira e Castilho (2020). Essa abordagem busca compreender os espaços organizacionais como produtores de conhecimento, tomando como referência os conceitos e valores vividos pelos sujeitos na organização. Os momentos etnográficos foram captados por meio de documentos oficiais, entrevistas, conversas informais e observação participante.



Resultados e Discussão
A pesquisa identificou elementos cruciais ao inter-relacionar os contextos de influência, produção de texto e prática. Ao examinar as normas e procedimentos elaborados para guiar a operacionalização da política, destacou-se a influência de práticas patrimonialistas e a ampla adoção da lógica gerencial baseada em contratos com entidades privadas para a prestação de serviços de assistência. Tais influências não permitiram que o SASISUS se destacasse como um modelo singular de atenção à saúde no país, suprimindo a essência da política original de saúde indígena. Além disso, ao analisar as práticas de gestão em um Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) na Amazônia, foi observada uma ênfase no controle da produtividade em detrimento de outras funções gerenciais essenciais, como o monitoramento epidemiológico e a avaliação local do impacto das medidas implementadas.
Já no contexto das práticas assistenciais, três fenômenos fundamentais emergem como influências críticas na rotina dos serviços: o modelo médico-assistencial, o modelo sanitarista e a cultura do desempenho. Os modelos hegemônicos persistem, apesar das características sociais, geográficas e culturais inerentes ao contexto indígena, revelando que sua força foi pouco alterada pelos implementadores da política. A cultura do desempenho, por sua vez, introduziu um paradigma de controle baseado em indicadores quantitativos e metas pré-definidas, afetando a identidade profissional, as interações sociais e desviando o foco das dinâmicas e necessidades de saúde locais. Não obstante, à margem da organização, outras práticas cotidianas são induzidas pelas necessidades temporais, sentimentos subjetivos e redes locais de poder. Entretanto, essas rotinas desafiam a estrutura formal e operam de maneira improvisada


Conclusões/Considerações finais
Os resultados deste estudo questionam a visão linear de que políticas públicas são simplesmente implementadas após sua formulação. O controle organizacional e a discricionariedade dos implementadores reformulam constantemente a política na prática (Lotta, 2019). Cabe ao pesquisador reconhecer o entrelaçamento de fenômenos e eventos que a transformam. Por isso, em vez de um método sequencial, optou-se por um modelo sistêmico baseado em métodos interpretativos.
O estudo etnográfico realizado em diversos contextos sobrepostos permitiu relacionar variáveis e explorar processos de disputa de valor e influência material que moldam os discursos dos implementadores. O contexto da prática mostrou-se essencial, pois é nele que os processos de interpretação ativa e construção de significado dos textos políticos são evidenciados. Além disso, o método etnográfico dentro da organização permitiu interpretar ambiguidades, contradições, omissões das ações e o surgimento de "espaços" de manobra.


Referências
Ball S. Education reform: a critical and poststructural approach. Open University Press; 1994.

Ferguson J, Gupta A. Spatializing states: toward an ethnography of neoliberal governmentality. American Ethnologist. 2002;29(4):981-1002.

Lotta G. A política pública como ela é: contribuições dos estudos sobre implementação para a análise de políticas públicas. In: Lotta G (org). Teorias e análises sobre implementação de políticas públicas no Brasil. Brasília: Enap; 2019. p. 11-38.

Pontes ALM. Debates e Embates entre Reforma Sanitária e Indigenismo na Criação do Subsistema de Saúde Indígena e do Modelo de Distritalização. In: Pontes ALM, Machado FRS, Santos RV. Políticas antes da política de saúde indígena. 1ª ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2021. p. 205-229.

Teixeira CC, Castilho S. Ipea: etnografia de uma Instituição: entre pessoas e documentos. Rio de Janeiro: ABA Publicações; 2020.

Fonte(s) de financiamento: Ministério da Saúde, Capes, CNPq, Fapeam


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