04/11/2024 - 13:30 - 15:00 CC1.1 - Mercado, Justiça e Saúde: os desafios para a garantia de acesso no sistema de saúde brasileiro |
51664 - PATENTES FARMACÊUTICAS E BIOTECNOLÓGICAS NO CENTRO DO DEBATE NO CONGRESSO NACIONAL: REFLEXÕES SOBRE COLONIALIDADE E RESISTÊNCIA EM DOIS MOMENTOS HISTÓRICOS LUCIANA DE MELO NUNES LOPES - UFMG, ELI IOLA GURGEL DE ANDRADE - UFMG, ELIS MINA SERAYA BORDE - UFMG
Apresentação/Introdução A colonialidade, enquanto lógica moderna de administração e controle que influencia diferentes dimensões da vida humana que sustentam nossas visões de mundo, contribui para a naturalização do sistema-mundo moderno/colonial/eurocêntrico/capitalista. Inspirado por Fanon, Maldonado-Torres aponta a subjetividade como o elemento comum às três dimensões da colonialidade – do poder, do saber e do ser –, sendo o sujeito, portanto, tanto um produto quanto um gerador da estrutura social e cultural. Dentre os campos fundamentais de reprodução da colonialidade, destaca-se o discurso, já que, segundo hooks, os valores que sustentam uma cultura e sua ética moldam e influenciam a forma como falamos. Uma vez que na experiência subjetiva dos povos do Sul Global, a modernidade é colocada como um horizonte a ser alcançado, a análise discursiva dos povos do Sul Global pode nos ajudar a identificar e compreender as múltiplas formas de sustentação da colonialidade – inclusive aquela relacionada ao sistema vigente de propriedade intelectual (PI), que constitui-se como uma estrutura determinante das desigualdades de acesso às tecnologias em saúde entre o Norte e o Sul Global.
Objetivos Adotando a premissa de que os direitos de propriedade intelectual (PI) configuram-se como um dispositivo de manutenção e reprodução da colonialidade na saúde global, este estudo de caso teve por objetivo analisar falas de brasileiros sobre patentes biotecnológicas e farmacêuticas e identificar elementos da colonialidade do poder, do saber e do ser que sustentam suas percepções e posicionamentos em relação ao tema.
Metodologia Trata-se de um estudo de caso qualitativo realizado a partir de pesquisa documental e Análise Temática (AT) de notas taquigráficas da Câmara dos Deputados do Brasil. Buscou-se analisar elementos de colonialidade nas falas sobre patentes biotecnológicas e/ou farmacêuticas de representantes da sociedade civil, deputados e outros atores envolvidos com o tema em dois contextos históricos distintos: nos debates sobre o Projeto de Lei 824/91, que transformar-se-ia na Lei 9.279/96 (Lei de Propriedade Industrial - LPI), e nos debates sobre “quebra de patentes” na pandemia de Covid-19, que resultaria na Lei 14.200/21. A AT foi conduzida com apoio do software Atlas.ti e conforme proposta por Braun e Clarke, com identificação, análise, interpretação e demonstração de padrões (temas). Utilizou-se uma abordagem mista: partiu-se de abordagens e conceitos decoloniais latino-americanos para codificação dedutiva e separação dos temas nas três dimensões da colonialidade, mas esses foram indutivamente definidos ao longo da análise. Foram estudadas falas de 28 pessoas pré-LPI (sessões de 13/04/1993 e 15/04/1993) e de 51 pessoas pós-LPI (sessão de 08/04/2021).
Resultados e Discussão Ainda que aproximadamente 60% dos 400 trechos de falas analisados em 1993 se posicionaram contrários à proteção de patentes biotecnológicas/farmacêuticas, 62,75% deles se aproximaram mais da colonialidade, enquanto 37,25% apresentaram uma crítica ou resistência a ela (decolonialidade). Dos 316 trechos analisados em 2021, quase 85% eram favoráveis ao uso de licenças compulsórias (LC) na pandemia de covid-19 e 61% se aproximaram mais da colonialidade. Os trechos de fala favoráveis à proteção de patentes biotecnológicas/farmacêuticas ou contrários às LC se aproximaram quase em sua totalidade da colonialidade. A partir da codificação dos 716 trechos, chegou-se a uma lista de 63 temas. Um importante tema identificado em 1993, tanto em falas contrárias quanto favoráveis à PI, foi o “modernidade/mundo civilizado como horizonte”, o que parece reforçar o papel da PI na missão civilizatória eurocêntrica. Em 2021, um tema central foi "a racionalidade do debate", o que reforça uma outra diferença em relação a 1993: naquele ano, entidades foram convidadas para o debate, enquanto em 2021, foram chamados profissionais "especialistas". Isso reflete o fortalecimento de uma sociedade meritocrática, marcada pelo credencialismo acadêmico e pela transformação do discurso público em uma tecnocracia. Enquanto em 1993 as falas eram mais combativas, em 2021, o debate se deu em um contexto de naturalização da PI. A forte aparição do tema “direito à saúde” em 2021 parecia indicar uma interessante mudança no sentido da solidariedade e da coletividade. Mas as reflexões a partir do conjunto dos temas identificados neste estudo acabam por apontar o predomínio de um entendimento utilitarista e tecnicista da garantia desse direito, que acaba por se aproximar da “cobertura universal de saúde”.
Conclusões/Considerações finais O estudo aponta para a importância de investigar as narrativas que sustentam o discurso público. Desde a LPI/96, a covid-19 foi o momento mais intenso de debate sobre os efeitos negativos da PI no acesso às tecnologias em saúde. Ainda que a retomada dessa agenda tenha soado como vitória para o movimento de acesso a medicamentos e para o campo da Saúde Coletiva, as análises também apontam para o reforço do argumento de “excepcionalidade” do contexto pandêmico para justificar o uso de LC, o que parece fortalecer uma noção de “radicalidade” envolvendo um mecanismo legítimo – ainda que limitado – e subutilizado para a mitigação dos efeitos da PI na saúde. Mesmo as narrativas de resistência à PI acabaram por se aproximar da colonialidade; portanto, investigações que buscam analisar jogos de linguagem e estruturas narrativas que a conformam e tensionam podem nos ajudar a pensar estratégias para a desconstrução do sistema colonial de PI e a descolonização do acesso às tecnologias em saúde.
Referências BRAUN, V.; CLARKE, V. Using thematic analysis in psychology. Qualitative Research in Psychology, v. 3, n. 2, p. 77-101, 2006.
GROSFOGUEL, R. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: Transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. Revista Crítica de Ciências Sociais, n.80, p.115-147, mar. 2018.
HOOKS, b. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. Editora Elefante – São Paulo, 2021.
LANDER, E. Los derechos de propiedad intelectual en la geopolítica del saber de la sociedad global. Comentario Internacional, n.2, p.1-28, 2001.
MALDONADO-TORRES, N. Analítica da colonialidade e da decolonialidade: algumas dimensões básicas. In [BERNARDINO-COSTA; MALDONADO-TORRES; GROSFOGUEL] - Decolonialidade e pensamento Afrodiaspórico. Autência - Belo Horizonte, 2020.
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